Um equívoco pulsante: a tal publicação literária “tradicional”
O escritor e editor João Lucas Dusi, à frente da Madame Psicose, faz reflexões a respeito do mercado editorial e apresenta o selo Incandenza
O ego do escritor não poderia ser capturado nem mesmo pelas lentes do telescópio Hubble, responsável por escrutinar os recônditos mais remotos do cosmos, bilhões de anos no passado. Após o ponto final em uma prosa ficcional, tem-se a noção imediata, na maioria dos casos, de que uma obra-prima foi parida. O desejo inicial é que seu brilho ofusque – violentamente, com a fúria de Aquiles – o meio editorial. E que uma turnê nacional, quiçá internacional, seja organizada as soon as possible: o mundo, afinal, não pode esperar nem mais um segundo para se deleitar com sua maestria. Há, no entanto, algumas pedras no caminho – quem diz é Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), que custeou seu próprio livro de estreia, Alguma poesia (1930), quando ainda era funcionário público em Belo Horizonte. Mas sei que ele não está à altura de sua genialidade.
Não demora para essa ilusão ir pro caralho: ao perceber que vender livros no Brasil é bem mais difícil do que comercializar crack, há o primeiro choque de realidade – a depender do tamanho da sua inocência. Na conjuntura nacional atual, em que o café vale ouro e comer carne é luxo, diante do sucateamento absurdo de todas as vertentes mais básicas da vida brasileña, comprar livro é uma escolha insana. Quem ainda o faz, alheio ao fato de que este país grotesco perdeu quase sete milhões de leitores nos últimos quatro anos, só pode ser movido pela loucura – e são poucos. Poucos e loucos. Diante desse cenário macabro, onde se encaixa a tal publicação tradicional cuspida sem parcimônia pela boca de alguns ingênuos estreantes?
No ego de quem escreve. É a única explicação. Uma explicação que ignora todos os processos editorais – talvez por ignorância, talvez por hubris – envolvidos na produção do objeto-livro: elaboração da capa, diagramação profissional, registro na CBL + ficha catalográfica, manutenção do site da editora responsável, revisão do conteúdo, eventuais dispêndios em eventos e, a maior bomba, o custo de impressão. Não se trata de um passe de mágica, por meio do qual a mentalização dá à luz a obra prontinha, toda bonitinha em pólen 90g, mas sim de uma série de etapas envolvendo diferentes profissionais (remunerados, claro), sem nem entrar no mérito do escanteamento da figura do editor – esse maestro do caos que, por alguma razão bizarra, parece que deve obrigatoriamente trabalhar de graça sempre.
Opções
Hoje em dia, com tanta informação à disposição, é plenamente possível editar seu próprio livro: basta lidar com todos os processos descritos; fazer tudo na raça, com seus próprios meios. Problema nenhum. E também existem os grandes monopólios, é claro, que podem apostar na sua obra – caso você tenha um sobrenome de prestígio, obviamente, ou já tenha matado no peito anos e anos de ostracismo, de forma incansável, até alguém finalmente lhe reconhecer ou, ainda, tenha vencido um dos grandes prêmios mixurucas do certame. Nada disso vai acontecer antes dos primeiros passos – a não ser que, novamente, você tenha um sobrenome de prestígio ou potencial de venda. Ninguém está nesse ramo para fazer caridade, e mexer com literatura é um tiro no pé: muitas vezes, devido à incessante encheção de saco, afasta-nos da paixão pelos livros.
Não me entenda a mal. Dos meus 16 aos 20 e poucos, também me vi puto da cara com o funcionamento do mercado editorial. Vendo tanta falcatrua escancarada, resta espaço apenas para o nojo: seja em relação às figurinhas carimbadas de prêmios, que produzem ficção em conluio com assuntos da moda (reparações históricas; sertão; sem nenhuma potência literária), ou os ídolos de areia criados por grandes monopólios, como no caso do autor do romance Foice assimétrica, de Ribamar Pereira Junior. Nem acho que ele esteja errado enquanto ser humano: temos todos o desejo de atenção, sonhos na gaveta e vontade de vender bastante. Mas não é possível ignorar as engrenagens deste velho sistema – bem velho, aliás; sei bem que não há novidade nenhuma nessa publicidade agressiva que cria reizinhos de lugar nenhum. E, de uma forma mais ampla, é até melhor que pelo menos exista essa figura que fura a bolha, já que, apesar de carregar nas costas um papel crucial na manutenção da cultura, a ficção independente tem um poder de fogo muito pequeno. E já que, apesar de estarmos no país de Machado de Assis, foi preciso uma tiktoker norte-americana falar sobre Memórias póstumas de Brás Cubas para que o povo acordasse para a genialidade do Bruxo do Cosme Velho – por apenas quinze segundos, é claro, até passar pro próximo assunto urgente (espalhado pela rede social chinesa).
Antes de atirar pedras, tenha em mente: eu mesmo me aventurei nas apostas com a Madame Psicose. Os títulos publicados pelo selo principal são gratuitos, isto é, arco com tudo, e os seleciono a dedo, isto é, trata-se do meu crivo pessoal – e isso é tudo problema meu, sei bem, em uma manobra que traz significado à minha trajetória; não encare somente como chorumelas, apesar de também ser. Agora, também pus em prática o selo Incandenza, com contratos que preveem aquisição de exemplares por parte dos autores, porque trabalhar pra caralho a fim de ganhar migalhas é um saco. Em contrapartida, ofereço todos os serviços já mencionados aqui, com foco na revisão da prosa. Apesar de nem sempre parecer, ainda mais em tempos de redes sociais e “inteligências artificiais” – não são inteligentes nem artificiais –, a boa ficção ainda diz respeito à qualidade do texto.
Caso queira embarcar nessa jornada, mande seu original para mampsicose@gmail.com
O editor
João Lucas Dusi é escritor e editor. Publicou o romance O diabo na rua (2022) e os contos de O grito da borboleta (2019). Além disso, organizou e conduziu as entrevistas do livro Provocações (2024), que pode ser adquirido respondendo a este e-mail, e tem mais de cem matérias, com foco em jornalismo cultural, publicadas em diferentes veículos. Já editou dezenas de títulos pela Kotter e está à frente da Madame Psicose. Vive em Curitiba (PR).