Resenha | Os Vilelas: décadas de vaidade e tragédias
Romance de Ricardo Bernhard acompanha diferentes gerações de uma família humana, demasiada humana
Por João Lucas Dusi
Até pensei em classificar os membros da família Vilela como “frutos podres da ganância”, ou algo assim, o que seria uma maneira bastante rasa, mesmo que válida até certo ponto, de encarar o romance de Ricardo Bernhard. Não demorei a descartar essa ideia de jerico. Em 471 páginas, e durante quatro décadas (1979-2019), Os Vilelas (compre aqui) expõe as vísceras de diferentes gerações movidas, agora sim, pela vaidade e pelo medo. São todas figuras obcecadas, em maior ou menor nível e em distintas áreas de atuação, imersas em um quebra-cabeças que não admite valoração e está repleto de fundos históricos (Ditadura, criação dos primeiros antidepressivos, boom de empresas tecnológicas e do blog). Se a literatura contemporânea – a festejada por prêmios, que fique claro – tende a operar em uma tacanha chave dualista, reduzindo o mundo às simplistas definições de bem e mal, mocinho e vilão, uma história de gente humana, demasiada humana, surge como alívio. “Às vezes, julgava ter compreendido cada um dos Vilelas, outras vezes tinha certeza de que nunca os poderia compreender”, diz um médico no final da obra, momento em que Bernhard parece ter escolhido para fazer, por meio dessa voz fictícia, um balanço de seu próprio trabalho.
A leitura é um tormento também, vá lá, já que não é de todo agradável encarar uma narrativa que faz questão de mostrar o ridículo dos jogos sociais, em variados ambientes de trabalho (universidade, indústria farmacêutica, banco e redação de jornal), e deixa claro como até mesmo no núcleo familiar, ou principalmente nele, o baile de máscaras impera. Uma narrativa que, novamente em oposição ao tom panfletário reinante na produção literária atual, preza pelas dúvidas, não soluções fáceis, e aposta no incômodo. Não é possível pôr Joaquim (pai), Adriana (mãe), Diogo e Luísa (filhos) em confortáveis caixinhas sociais muito bem delimitadas, regidas por definições pétreas, o que dá um nó na cabeça do carrasco que habita cada um de nós: a vontade de julgá-los seres abjetos é grande, mas o passar do tempo tende a expor a natureza frágil de cada um deles – seres assustados, confusos, perdidos em meio ao caos social, até mesmo quando são promotores dessa condição. Não há vítimas, no entanto, mas pessoas de carne e osso: cheias de camadas complexas. O podre de todo mundo, afinal, costuma descansar em crostas profundas; cavando bem, acha. Se a ficção tem algum papel, este é um dos mais importantes: promover a subversão do pensamento.
Camadas
O que você diria, em uma primeira impressão, de um professor de Física superorganizado, dedicado ao seu ofício, seguidor de uma filosofia própria na qual seu valioso tempo é dividido em bloquinhos? Alguém que, na tentativa de racionalizar o mundo, construiu uma solitária prisão para si mesmo e opera de forma quase mecânica, aguentando toda sorte de desaforos da esposa – viciada em poder, adepta da microgestão de sentimentos alheios – em nome da manutenção de uma ilusória normalidade, enquanto sonha ser coroado como um dos expoentes de sua área, sem nunca negligenciar os afazeres domésticos e estar sempre presente, na ausência da mãe, na criação do casal de filhos pequenos? E se esse alguém, por acaso, estivesse subordinado a um diretor linha-dura (Orlando, filhote da Ditadura) e acabasse obedecendo a um pedido de espionagem, por mera função do dever, que acabaria resultando na demissão de um colega jovem e esperançoso? E se, além disso, a negligência desse professor para com sua aluna mais dedicada culminasse em uma tragédia irreversível? Na figura de Joaquim Vilela, no primeiro capítulo da obra (“1979”), o narrador de Bernhard mostra a que veio: pôr a moralidade de ponta-cabeça, em uma prosa que, apesar de esmerada e atenta à ambientação, peca devido ao didatismo exagerado, por meio de uma onisciência que não deixa muito espaço para o leitor ligar os pontos – condição que atravessa quase todo o livro.
No recorte temporal seguinte (“1989”), vez de Adriana protagonizar a história, o buraco é ainda mais embaixo. Avessa à ideia de representar um papel social de boazinha, ela pode despertar asco inicialmente – o que é uma qualidade da escrita, bem-sucedida na construção das personagens –, mas não demora a mostrar como sua postura não passa, na verdade, de mero mecanismo de defesa – uma fera acuada. O comportamento manipulativo e explosivo da mulher, parece, é muito devido a um enorme trauma do passado – do qual Joaquim foi cúmplice, aliás, o que talvez explique o laço duradouro do casal, mesmo que a relação estivesse longe de ser um mar de rosas.
Em oposição à postura de Joaquim, crente de que agiu de forma escusa só porque o mandaram fazer, sem opção de contrariar a hierarquia, Dri – como é chamada – não faz questão de esconder sua obsessão por liberdade (isto é, em sua visão, dinheiro e poder) e entende a vida corporativa como uma selva. Em um de seus muitos arroubos discursivos, normalmente feitos para diminuir alguém, diz ao filho – o qual tentou adestrar, e conseguiu (ou acreditou ter conseguido): “Tudo é, sim, uma competição, e não adianta querer encobrir essa realidade, enfeitar essa realidade, com romantizações poéticas”. O que isso significa, na prática, é que a personagem irá fazer de tudo para ascender, e rápido, na carreira profissional. Até mesmo coisas que envolvem a fruição de um certo Toquinho, se é que me entende, apelido de um ocupante de cargo superior na multinacional farmacêutica em que trabalha. Não é, afinal, uma atitude essencialmente igual à do marido?
Contaminação
O capítulo no qual mais lamentei o didatismo da prosa foi o terceiro, “1999”, no qual Diogo Vilela – investidor bem-sucedido, vitimado posteriormente pela própria ganância (plantada pela mãe? Sempre foi dele?) – fica sob o holofote. O clima no Banco Gaivota é uma versão amena de O lobo de Wall Street, com toda sorte de xingamentos e provocações para lá e para cá. Se é verdade que a narrativa não perde o cacoete de tudo explicar, a elaboração das vozes dos personagens até que dá conta de driblar esse incômodo – na figura de Sharkís, por exemplo, superior de Diogo, um bufão de primeira e caricato na medida certa. Essa personagem, aparentemente tosco, dá ao leitor um leve vislumbre do que guarda em si quando se cansa de ouvir as lamúrias revoltadas de um colega de Diogo: “Você acha que a gente tá sentindo o quê atrás desses monitores? Um tesão fudido por esses gráficos de pizza e por essas curvas de rentabilidade? Se toca, Brunico, que tu não tem nada de especial. Qualquer homem de vinte ou trinta ou quarenta e poucos anos evidentemente tá infeliz duma ponta à outra, infeliz, puto e pronto pra matar”.
Nessa linha temporal, que antecede a de Luísa (“2009”), percebi bem como o romance teria funcionado melhor em primeira pessoa, com tons diferentes para cada uma das partes: a leitura seria mais dinâmica. Por meio da visão direta dos personagens, também, teria sido possível adicionar outras camadas às personalidades e brincar ainda mais com a percepção do leitor, como na boa e velha lição de Machado de Assis em Dom Casmurro. Mas, para além dos meus palpites delirantes, também dá para encarar um certo equilíbrio entre o narrador onisciente, algo “quadradão”, e o discurso solto dos personagens.
Dez anos à frente, a figura mais frágil – e talvez complexa, certamente com um final triste – dá as caras. Não dá para entender bem qual é a da Luísa, o que é um mérito literário. Ressabiada desde criança, ela enfrentou os demônios da consciência desde cedo, desde sempre, e resultou em uma mulher reclusa, com sérios desvios sociais, se é que não estou contrariando o meu próprio conselho inicial, o de não valorar. É que morando com os pais aos 35 anos, e parece que se alimentando de filosofices a respeito do futuro da humanidade (não é uma forma de vaidade, por mais que pareça empatia?), fica difícil “defender” a personagem. Brincadeiras à parte, ela – após aceitar o emprego de colunista em uma revista de distribuição nacional, depois de anos alimentando um blog com textos premonitórios – adiciona uma camada de estranhamento muito agradável ao conjunto: sem maiores explicações, talvez paralisada pelo medo, deixa-se levar por situações as mais invasivas, todas praticadas por homens em posições de poder, de cunho sexual. Trata-se de um belo acerto do narrador: seguindo a dica de ouro show, don’t tell, expõe o bizarro comportamento corporativo dos homens em relação às mulheres, sem precisar de reflexões óbvias a respeito do assunto.
Máscaras
A trajetória dos Vilelas é “uma linda teoria destruída por fatos reais”, emprestando uma frase que permeia a história em momentos distintos. Planos interrompidos, decisões erradas e tentativas de controle frustradas atravessam a obra e cobram um preço – de diferentes maneiras para cada um dos membros da família; para um deles, aliás, o preço é a vida. O gosto que fica, após a jornada de quase 500 páginas, é o da dúvida. Assim como a dúvida está plantada na cabeça de Joaquim, Adriana, Diogo e Luísa, os quais lidam com ela por meio de máscaras distintas. Em idade mais avançada, o pai até chega a uma visão crua, talvez amargurada, da coisa toda:
A vida é, primeiro, uma sucessão de mal-entendidos. Só quem viveu determinada situação sabe o que realmente se passou, e isso num sentido personalíssimo. Pois existem verdades individuais a que só você tem acesso. O resto é interpretação – em geral, equivocada; como regra, distorcida. Tentar provar que a verdade não é aquela que se alardeia é a mais vã das ocupações. (...)
Trata-se de uma narrativa calcada em interrogações, por mais que os personagens lutem para estabelecer verdades absolutas, que aponta para a condição falível da existência. A dinâmica do mundo corporativo, presente na vida de todos os personagens, acaba sendo a metáfora perfeita para denunciar essa tragédia anunciada, e é Camila – uma das muitas namoradas de Diogo – quem melhor sintetiza essa condição: “O mundo corporativo é um só, porque o ser humano é um só”. É tudo tão complexo e vasto quanto o Universo, falso quanto o corporativismo de uma multinacional, sujo como um banco e enviesado quanto uma redação de jornal.
Autor | Ricardo Bernhard
Carioca nascido em 1986, Ricardo Bernhard é autor dos romances Litoral noir (Editora Madrepérola), Os Vilelas (Editora 7Letras) e Um caminho particular do futuro (no prelo). Mora atualmente na África do Sul, com a esposa e os seus dois filhos.
Resenhista | João Lucas Dusi
João Lucas Dusi é editor na Madame Psicose. Publicou os livros O diabo na rua (romance, 2022) e O grito da borboleta (conto, 2019). Trabalhou nos jornais de literatura Cândido e Rascunho. Vive em Curitiba (PR).
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