Os tormentos da linguagem: conheça o romance “Entre o traço e o apagamento”
Por meio de um personagem imóvel e acamado, o alagoano Genisson Angelo Guimarães faz uma poderosa – e brutal – reflexão filosófica
Divagações, lamentos memorialísticos, saudosismos ingênuos, desejos, sonhos e questionamentos acerca da medicina e da tradição religiosa estão no centro do romance Entre o traço e o apagamento, de Genisson Angelo Guimarães. O alagoano estreia na narrativa de fôlego com uma instigante trama a respeito da linguagem e de sua inextrincável relação com a vida e com a morte, por meio de um personagem, o Alcindo, que acena para o clássico A metamorfose, de Kafka, conforme análise de Claudecir Rocha, editor da obra. Além disso, ecos de Beckett, Heidegger e Schopenhauer estão presentes.
“É um dos raros livros que impactam o leitor e o faz refletir sobre o sentido da vida, em que a morte do corpo não é apenas o fim da vida, mas o fim da linguagem, pois nossa existência está na própria linguagem”, comenta Rocha. “Assim como acontece com Gregor Samsa, Alcindo morre fisicamente quando se torna inútil para a sociedade. No entanto, a morte só ocorre pelo fim da linguagem, o apagamento do pensamento.”
O pivô dessa incursão introspectiva é Alcindo, pai de quatro filhas, avô de três netas e casado com a companheira de vida. Após um tropeço “bobo” na escada de casa, o personagem se vê acamado e incapaz de se relacionar diretamente com seus entes queridos. A linguagem, no entanto, continua a correr livremente por sua mente.
“Ao longo do livro, a linguagem – em seu caráter rizomático e organísmico – vai assumindo novas formas, por vezes decalcando os mapas traçados pelo cotidiano da família, por vezes criando rotas de fuga por meio das memórias, dos sonhos e das reflexões filosóficas”, explica o autor. “No fundo, o personagem principal desse romance de cunho filosófico não é Alcindo, mas sim a própria linguagem.”
Trecho | Entre o traço e o apagamento
Na cabeça de minhas filhas em breve eu me levantaria da cama, tornando-me o primeiro morto-vivo que deixara a morte e voltara a viver. A autoilusão plantou uma semente de esperança que, regada pelas águas do tempo, brotou uma árvore de decepção. As longas esperanças das meninas foram novamente encerradas em um espaço estreito e o desejo ardoroso de me ver de volta ao mundo dos vivos se esboroou; a nesga de vida revelada em um ínfimo e fugaz movimento de um dedo — nascido da raiva — feneceu como se armou, como se nada fosse; restara a inércia de um corpo congelado. Os olhares e as vozes das meninas, há muito agasalhadas na rotina diária sem novidades da vivência já vivida e da certeza antecipativa do encontro com o corpo morto em cima da cama, e que experimentaram uma chama calorosa capaz de reavivar olhares e vozes, retornaram ao estado de fadiga. A imagem encarnada em cada uma delas, nascida dessa incrível capacidade humana de transcendência imaginativa, fora, aos poucos, substituída pela dureza das formas vivas, do tempo sem movimento, da irremovível realidade que não se coloca em parênteses. O novo silêncio, da decepção, insinuou-se gradativamente no espaço de meu quarto e calou-me. À medida que o poder da surpresa se transformara em uma luxuosa cicatriz capaz de modificar a tonalidade dos afetos de todos em casa, meus palavrões foram colocados na geladeira, e uma dor indizível se apossou de mim. A magnitude da alegria e reavivamento das meninas provocada pelo dedão do meu pé direito foi capaz de me despertar para dimensão do amor dessas mulheres por mim. Dez anos de rotina, de incessante repetição, de falatório e orações, de sondas, tubos, soros e remédios, calcificaram a vida que me restava. E sentir em mim a tristeza profunda das meninas assemelhou-se a uma espécie de parada respiratória, entre tantas que já tive, mas dessa vez nascida não da suspensão, mas sim do abraço entre tempo e espaço. Ali éramos todos o mesmo, um só pranto, uma luz convulsa que deixara entrever que o que acontece é inalcançável por nossos pensamentos, sentimentos e desejos.
Por trás da obra
“Sempre tive afeição pela literatura que nasce a partir de lugares exíguos, constritos, quase sufocantes”, explica o autor. “Após meus dois livros de contos, cujas narrativas nascem e fenecem em única imagem, e a última publicação, Gestos do instante, cujas poesias flertam com os limites impostos pela linguagem, procurei dar a esse novo projeto uma forma que abarcasse, dentro do gênero romance, a mesma clausura existencial que marca meus outros escritos.”
“Diante da complexidade inerente à tessitura de um romance, lancei mão de um personagem acamado e imóvel, habitado por uma voz pensante que passeia livremente ao longo do livro, escrito em primeira pessoa”, continua. “Aprisionado pelas palavras, Alcindo, ao mesmo tempo, encontra igualmente nas palavras sua última forma de liberdade. Como nos disse Martin Heidegger, a linguagem é nossa morada, e é com ela que temos que nos haver. É com a linguagem silenciosa que habita seus pensamentos e devaneios que Alcindo tem que se haver.”
O autor | Genisson Angelo Guimarães
Nasceu em Maceió, estado de Alagoas, em 1978. Médico psiquiatra, terapeuta, escritor e filósofo clínico, lançou seu primeiro livro na Espanha, no ano de 2014, Cuentos & encuentros, entre la esencia y la realidade. Em 2015, a obra foi lançada no Brasil e em Portugal com o título Contos e encontros, entre a essência e a realidade. Em 2017, lançou o segundo livro de contos, A borboleta amarela e o mendigo. Em 2023, foi a vez do primeiro livro de poesia, Gestos do instante, já pela Kotter editorial. Entre o traço e o apagamento é o primeiro romance do autor. Contato: genisson.guimaraes@gmail.com