“Em suspensão”: cartas em meio ao caos
Romance epistolar de Eduardo Ferraz Felippe entrelaça personagens e densas reflexões durante uma catástrofe global
“É possível tratar da pandemia, uma catástrofe global, sem cair no catastrofismo?”, perguntou-se o escritor Eduardo Ferraz Felippe durante a elaboração de seu romance de estreia, o epistolar Em suspensão, no qual personagens – vivos e mortos, com aparições de Kafka e Guimarães Rosa – trocam impressões do tedioso dia a dia e densas reflexões por meio de cartas, em uma obra alinhada com questões discutidas por ficcionistas como David Foster Wallace, Xavier de Maistre e Dino Buzzati.
Tratando-se de um momento de clausura, não se assuste: há mais interrogações do que certezas, sobretudo ao considerarmos a natureza das relações entre os personagens – Edu, Emanuel, Mariana e Thiago, de diferentes gerações –, bem como seus cotidianos, aspirações, mágoas e dúvidas (em relação ao mundo que será habitado por uma criança que está sendo gestada, por exemplo).
Há também cartas endereçadas a algumas figuras ilustres, incluindo as duas já mencionadas, além de Tarkovsky, Bergman, Clarice Lispector e Walter Benjamin. Não julgue Edu por ter elaborado missivas aos mortos. É provável que sua noção de realidade também tenha sido colocada em xeque durante a reclusão, assim como talvez você tenha pensado que o mundo mudaria profundamente. Mudou?
Trecho
Hoje, sabemos o final dessa história: estamos vivos. Ela acabou de acabar, se é que acabou. Há hospitais cheios, casos se multiplicando, postos de vacinação lotados. Não, não acabou. Estamos enredados nessa estranha dilatação do presente. Ainda não é o futuro, já não é mais o passado. Talvez por isso o livro fale tanto do que foi quanto do que será, talvez essas cartas sejam o melhor a ofertar. Sinto-me dessemelhante ao que acabei de ser, mas não completamente outro. Os hábitos já não são mais os mesmos, porém não tão diversos; os noticiários estão mais arejados, porém não tão aprazíveis. Como falar de um passado não ultrapassado e de um futuro até agora não anunciado? Naquela suspensão, de algum modo vivenciada hoje, tínhamos dificuldade em definir passado e futuro. Não tenho dúvidas dessa influência na escolha das cartas, a ordem das conversas, as opções pelo encadeamento dos missivistas. As datações das cartas não dão conta da narrativa que se move adiante enquanto os correspondentes olham para frente e para trás.
Palavras do autor
Para o professor da UERJ, trata-se de um livro “sobre clausura, tédio e solidão, que poderia ter ocorrido na pandemia ou não, onde os personagens se interrogam sobre a passagem dotempo”, o que justifica a escolha de uma obra de Artur Lescher na capa. “Escolhi também me distanciar de algumas convenções, pois não há reviravolta, não há mistério a ser desvelado, não se percebe nitidamente a transformação das personagens”, continua Eduardo. “Pelo contrário, colocam em xeque a mudança, se são ou não são mais as mesmas, se os sonhos eram prenúncios ou não de um tempo futuro.”
É importante ressaltar, ainda segundo o autor, que não se trata de uma narrativa edificante, “exceto se ficção e ruína caminharem juntos a cada carta, a cada dia”. “Trata-se de um romance em que as três trocas de cartas se expressam particularmente em relação ao tempo e à narrativa”, continua. “A primeira, no diálogo com um professor que narra o peso de um trauma passado, a segunda de um futuro irrealizado com uma ex-namorada e, por fim, a espera do futuro pela chegada do filho. Trocas epistolares independentes, mas unidas por um fio comum. Face um acontecimento de proporções planetárias e uma experiência crucial, os personagens se perguntam se lidam com o ‘ainda não’ de um novo mundo ou expressam o ‘não mais’ do mundo que se foi.”